Imagem: Os Dinossauros e Deus
Por Elton Valente
Faz mais de um século e meio que Darwin e Wallace desvendaram a parte essencial do mistério humano. Ou seja, Darwin e Wallace acabaram com o enigma humano e outros sustos da psicologia* monoteísta. A Ciência reiteradamente tem nos dito que somos o resultado de um processo natural evolutivo, e não um design metafísico.
Já em pleno gozo do tão festejado Século XXI, temos todas as chaves para nos libertar das bruxas e libertar as bruxas de nós. Temos todas as bases racionais para superar a ideia do bem e do mal metafísicos, dar esta fase de psicose** coletiva como encerrada e seguir em frente, sob uma ordem menos assombrada.
Não estou defendendo aqui um “ateísmo engajado”, porque não acho que este seja o caminho mais proveitoso. Não acredito na eficácia desse método. Minhas questões aqui também não pretendem atacar Dawkins, ou Clément Rosset, ou Saramago, ou Michel Onfray e tantos outros, até porque não quero me enveredar por esse caminho. Caso contrário eu teria que me debruçar sobre uma montanha enfadonha de epistemologias “teo-atéias” que existem por aí, muitas delas indecisas. Na prática, elas só desviam o foco da questão central.
Creio que avançaríamos muito mais se retomássemos as ideias dos pensadores do século XIX. Ainda que isto possa encerrar alguma coisa de paradoxal. Retroceder para avançar (acho que Sun Tzu já disse algo assim).
Há mais de um século, pela voz de Nietzsche, a cultura humana anunciou numa constatação: “Deus está morto”! Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê desse ato, de uma história superior a toda a história até hoje! Disse Friedrich Nietzsche, em A Gaia Ciência (1882) – trata-se de uma alegoria. A leitura disso é trivial, mas vale a pena repetir: não foi Nietzsche nem ninguém que “matou Deus”, a evolução do conhecimento humano é que superou a idéia de Deus, Nietzsche apenas anunciou essa constatação.
Há aqueles que argumentam, eu por exemplo, que a espiritualidade, resumida na ideia de Deus, é parte da essência humana. Mas por outro lado eu defino a espiritualidade e, portanto Deus, como um efeito colateral da inteligência humana. Não precisamos negar nossa espiritualidade, precisamos apenas domá-la, como domamos nossos instintos, senão continuaremos domados por ela e, portanto, vassalos daqueles que sabem manipular estas fraquezas humanas.
Há ainda aqueles que argumentam que “tirar Deus do homem pode causar danos irreversíveis em seu hardware”. Numa população encabrestada e amedrontada pelos dogmas, pode ser. Mas não o será em uma população que, desde cedo, tenha educação de qualidade e esteja livre de maniqueísmos metafísicos.
Há um limite neste atual estágio de evolução do intelecto humano, da psique humana. Considero que, em relação à nossa espécie, existem pelo menos três linhas evolutivas: a evolução do bicho, mamífero, primata; a evolução tecnológica; e a evolução da psique humana, do intelecto. Esta última, acredito, no atual estágio em que nos encontramos, é afetada negativamente pela espiritualidade indomada. Se ela foi importante em um passado remoto, como fator de agregação social (às vezes de desagregações e guerras), no presente ela é um obstáculo. Creio que se não domarmos a espiritualidade, mudando a forma como lidamos com ela, não vamos mais avançar como poderíamos e deveríamos. Muito menos sair dessa caverna imunda, da qual Platão nos advertiu.
É preciso entender também que, com ou sem hardware danificado, alguns “sacrifícios” intra-específicos são parte da tônica da evolução das espécies. Foi assim e é assim com a evolução de todas as espécies que habitaram, habitam, e hão de habitar este planeta. Quando não declinam para a extinção, as espécies sofrem as pressões da evolução e ponto final!
Porque é desalentador constatar a realidade humana. Ainda que toda A Caverna (de Platão) esteja iluminada pelo conhecimento, o humano ainda é, em essência, reticente. Ainda não há massa crítica suficiente e bem formada. Isto, mais de um século depois de Nietzsche anunciar a morte de Deus em A Gaia Ciência e depois de Carl Sagan nos advertir com o seu didático O Mundo Assombrado Pelos Demônios (1997). Talvez a mais brilhante e objetiva obra de divulgação científica de todos os tempos. Nela, Sagan faz uma exposição didática excepcional do Método Científico e demonstra como ele é sistematicamente ignorado pela maior parte da população.
Pior que isso, a ciência é sistematicamente subjugada, intencionalmente, por “lideranças” em busca de prestígio e poder, trabalhando para produzir uma massa ignorante de pessoas desinformadas, amedrontadas, emocional e materialmente carentes, sem capacidade crítica. E “nossa” dependência de Deus é usada e abusada inescrupulosamente por tais “lideranças” na feira da busca pelo Paraíso, o mercado da salvação das almas. Um filão inesgotável de riqueza material, prestígio e poder, em benefício de poucos e sacrifício de muitos.
Sagan argumenta em seu livro que a desinformação e a falta de capacidade crítica constituem um grande perigo para a sociedade. E demonstra, em linguagem absolutamente acessível, como o pensamento cético, a razão e a lógica devem prevalecer em favor da verdade, aquela que Nietzsche brilhantemente já havia proclamado ser relativa. Sagan demonstra como estas ferramentas são essenciais para descortinar pseudociências, fraudes, superstições, dogmas religiosos, cura pela fé, deuses, bruxas, percepção extra-sensorial, discos voadores (OVNIs) e outros argumentos que não se sustentam sob o escrutínio da ciência, da razão e do bom senso.
Observe que o primeiro lampejo do pensamento científico é atribuído ao grego-jônio Tales (séc. VI a.C.), em Mileto. A “Grécia” de então era, nada mais nada menos, do que um grupo de Cidades-Estado, sem relevância política, ocupando um território de topografia fragmentada ao longo do Mar Egeu. O único fator que as unia era o domínio da mesma língua. Aquela região não tinha nem mesmo um nome comum, o epíteto Grécia lhe foi dado pelos romanos. Estavam em um estágio inicial de desenvolvimento social, cultural e religioso. Sua religião consistia de um amontoado de deuses sem muita importância ocupando o Monte Olimpo. E aí reside um detalhe revelador. Era, portanto, um povo livre de religiões dogmáticas. Seus deuses eram semelhantes aos homens e não o contrário.
Para as religiões dogmáticas o homem foi criado à semelhança de Deus. Na Grécia os deuses foram criados à semelhança dos homens. Então, os gregos eram livres para questionar o mundo e o universo segundo sua própria razão.
E Tales fez o primeiro “tento” – “por que as coisas acontecem como acontecem?” – Mais importante ainda que a pergunta, foram as tentativas de respostas livres de um deus onisciente e onipresente. Este pensamento livre foi tão importante que iria influenciar toda a cultura ocidental dali para frente, e a Grécia se tornaria a referência cultural mais importante da civilização humana. Com reflexos em todos os campos, como artes, religião e ciência. Algumas vezes, quando este pensamento era tomado como verdade absoluta e associado a religiões dogmáticas, como foi o caso do modelo proposto por Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C), em vez de contribuir, atrasou o desenvolvimento científico.
Mas creio que dificilmente chegaremos a esse futuro superior, imaginado por Nietzsche e extraível daquilo que é didaticamente descrito por Sagan. Os obstáculos são muitos: os interesses espúrios, a covardia, a hipocrisia, a Educação que deveria ser A prioridade civilizatória e não é...
Vejam que estamos contabilizando a primeira década do Século XXI, ou seja, esta epopéia humana, de contornos babilônicos, fantasticamente está chegando ao ano 2010 do calendário gregoriano. Mas tristemente ainda evitando reconhecer e aceitar que a forma como lidamos com a espiritualidade é um grande obstáculo. Evita-se reconhecer a necessidade de levar a civilização a um estágio mais avançado, como definido por Nietzsche. Some-se a isto os modelos econômicos experimentados até agora, o socialismo-comunismo falido (todos eles consumaram A Revolução dos Bichos – o Brasil é o exemplo mais recente), o capitalismo predatório, a exploração de muitos por poucos, alargando as desigualdades sociais. E a “ordem estabelecida”, política e econômica, invariavelmente ligada ao poder das igrejas, das religiões, que se sustentam na ignorância do povo, e a ignorância do povo atrelada à espiritualidade indomada.
Portanto, com racionalidade, educação e bom senso, poderíamos considerar a possibilidade de um mundo pouco poluído, pouco degradado, com seus recursos naturais sendo racionalmente explorados, com uma população em número compatível com os recursos disponíveis, ou seja, poderíamos, em bases palpáveis, vislumbrar a possibilidade real de um mundo limpo e largo para todos.
Mas a humanidade ainda segue mergulhada em um mundo de escuridão. Um mundo ainda assombrado e assolado por demônios. Com Deus protegendo a integridade do hardware humano (?). E o mais inacreditável, paradoxal e absurdo disso tudo é que, desta vez, estamos vagando por este mundo em trevas com todos os faróis em nossas mãos, evitando acendê-los noite após noite, com medo da luz.
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(*) psicologia:
3 Conjunto de estados e processos mentais de uma pessoa ou grupo de pessoas, especialmente como determinante de ação e comportamento: A psicologia das massas.
(**) psicose:
2 Inquietação mental extrema de um indivíduo ou de um grupo social: Psicose de guerra.
Fonte: Dicionário Michaelis, aqui.